Saramago
olhando o vazio da existência humana: ser pessimista é ser profundamente humanista
Com a morte de Saramago, a língua portuguesa perde uma referência central no mundo contemporâneo. Autor bastante prolífico mesmo em sua idade avançada e saúde abalada, seus livros lançados de forma surpreendentemente ativa eram sempre uma novidade aguardada não só entre os leitores nativos do português mas de outras línguas. É pena que agora não exista um nome a altura que possa sucedê-lo neste espaço da leitura mundial. Perde o português, que é uma língua ainda a procura de leitores...
Reconheço que não sou especialista em sua obra. Li apenas dois de seus livros e um, não gostei. "A Caverna" narra uma história simples, mas singela, de uma família de oleiros em plena decadência devido a concorrência com um novo centro comercial gigante em sua localidade. Tema atual, bem escolhido, que mostrava a preocupação social e humanística de Saramago. Mas achei que o desenrolar da história foi enfadonho, arrastado desnecessariamente e com um final abrupto, e até certo ponto previsível, que poderia ter economizado horas de leituras e árvores de papel. Seu outro livro que li, "As intermitências da Morte" é bem mais interessante: uma bela história de Amor ou de Morte se preferir, que prefiro nem comentar para não estragar alguma surpresa...
Seu estilo de escrever marcou sua personalidade no mundo literário: é famosa a sua "falta de pontuação", que nem é assim tão novidadeira nem difícil de ser lida, e seus parágrafos longos, sem indicações claras dos diálogos, confundindo a narração em primeira e terceira pessoa. Mas não é na forma que Saramago será lembrado, afinal, vivemos no século das experimentações literarárias e para quem leu Guimarães Rosa ou decidiu enfrentar um "Ulisses" de James Joyce, uma mera falta de pontuação é coisa pequena. Acredito que Saramago será lembrado pelo conteúdo, pelo tema de seus romances, fortemente articulados com suas posições pessoais.
E é sobre elas que muito se falou: "ah! ele é comunista.... ele é anticatólico..."
Quanto a ser anticatólico, sim , ele o era. Assim como qualquer pessoa com um mínimo de inteligência deve ser... convenhamos..., apesar de respeitar a fé individual e a Igreja pela cultura que ela acumulou durante esses séculos, Saramago estava certo em centrar fogo nas ideias ainda tolas da Igreja acerca de temas fundamentais, como liberdade de expressão, domínio do corpo ou mesmo seus dogmas centrais. "Evangelho segundo Jesus Cristo" pode ser lido como um livro provocador, no bom sentido, no sentido de provocar pensamento, reflexão, e como um libelo humanista: Cristo como Ser Humano, sofredor, e não como um ser divinizado e ao mesmo tempo, distante da experiência única, e dolorosa, de viver a vida humana nesta planeta. Só uma Igreja tacanha iria ter a burrice de querer censurar um livro desses.E no Portugal ultra-carola, ele foi censurado...
E por último, a "acusação" de ser comunista.Prefiro outra coisa: Saramago era Humanista. Pertencia àquela espécie de dinossauros que preferiam um livro a um Ipod..., um bom poema a um video-game..., um bom vinho e uma boa conversa com amigos a duas horas na merda do MSN... Enfim, um humanista, alguém que preferia valorizar determinados temas, atitudes, enfim, um jeito de enxergar a vida, diferente do modelo que tão porcamente é colocado como o único possível. Comunista sim, mas nunca apoiou ditaduras stalinistas, mesmo quando demorou para romper em definitivo com Fidel, sempre criticou a "ilha" pela perseguição a seus dissidentes. Ele não era em definitivo um esquerdista daqueles tolinhos que ainda insistem em ler Marx só pela axila, vomitando frases comuns e ideias dos anos 30: soube posicionar-se com veemência contra Chávez, mostrando o que ele é, apenas um bobo ditador travestido de vermelho, enquanto criticava, com acidez incrível e saborosa, o capitalismo atual e principalmente sua indústria cultural, ela mesma, autoritária, pois sempre querendo impor padrões de pensamento e conduta ao mundo inteiro.
Negar o modelo atual no qual vivemos, trabalhar muito e mal, ganhar pouco e endividar-se loucamente, tudo para comprar o último tipo de telefone que ninguém absolutamente precisa, isso era Saramago.
Não me entendam mal: eu gosto de tecnologia, só não acho que ela deveria ser a única salvação messiânica da humanidade. Saramago apenas dizia, com aquela voz baixinha e deliciosamente irritante: sejamos humanos no (ainda) bom sentido da palavra, vamos conviver, ler, pensar, olhar o mundo com nossos olhos e de repente, espantar-se com as imensas misérias de nossa existência, material, moral, estética, política... E claro, sejamos profundamente pessimistas, como ele era: afinal, pensar o Ser Humano é antes de tudo ser pessimista pela nossa incomparável burrice.
Um Saramago a escrever humildemente em seu blog, usando de forma inteligente e com conteúdo, a tecnologia que ele tanto, com razão, desprezava. Mas antes de tudo, prefiro o Saramago profundamente pessimista, a continuar uma linha de pensadores "duros", verdadeiros, ácidos, e às vezes irônicos, da nossa condição humana, Voltaire, Machado, Eça. Como eles fazem falta hoje. Como sentiremos falta de Saramago.